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Rum: diário de um jornalista bêbado, de Hunter Thompson, chega em breve

04/04/2011

- Por L&PM Editores

Hunter Thompson volta à casa. Depois de Medo e delírio em Las Vegas, e de Hell´s Angels, lançados em 2010, breve teremos mais um título de Thompson na Coleção L&PM POCKET: Rum: diário de um jornalista bêbado. Considerada a primeira obra de ficção de Thompson, Rum conta a história do jornalista americano Paul Kemp que aceita uma oferta de emprego em Porto Rico com a ilusão de que terá uma vida boa e muito dinheiro. De malas feitas, Kemp parte para San Jose. O que ele vai encontrar por lá, no entanto, é muito diferente do que imaginava. Apesar da grande semelhança com a realidade de Thompson – o protagonista é um jornalista beberrão atraído por confusões – a história é fictícia. O livro, que tem previsão de lançamento para o final de abril ou início de maio, está sendo adaptado para o cinema com Johnny Depp no papel principal.

Abaixo, um trecho de primeiro capítulo de Rum: diário de um jornalista bêbado que tem tradução de Daniel Pellizzari.

 

Chegar meio bêbado em território estrangeiro é um problema para os nervos. Você tem a sensação de que algo está errado, de que está perdendo o controle. Eu me sentia assim e, quando cheguei ao ho­tel, fui direto para a cama.

Já eram quatro e meia da tarde quando acordei, faminto, imundo e sem muita certeza de onde estava. Fui até a sacada e olhei para a praia. Lá embaixo, uma multidão de mu­lheres, crianças e homens barrigudos se divertia dentro d’água. À minha direita, outro hotel e depois outro, cada um com sua própria praia lotada.

Tomei um banho e desci até o saguão aberto. Como o res­taurante estava fechado, tentei a sorte no bar. Tudo indicava que fora trazido diretamente de uma estância nas Montanhas Catskills. Fiquei sentado ali por duas horas, bebendo, comendo amendoins e olhando para o mar. Não havia nem doze pessoas naquele lugar. Os homens pareciam mexicanos doentes, com bigodinhos ralos e ternos de seda que brilhavam como se fossem feitos de plástico. A maior parte das mulheres era composta por americanas de aparência frágil, e nenhuma era jovem. Todas usavam vestidos de festa sem mangas, que lhes caíam tão bem quanto sacos de borracha.

Eu me sentia como algo trazido pela maré. Já fazia cinco anos que tinha aquele casaco amassado e puído na gola, minhas calças não tinham vincos e, embora nunca tivesse pensado em usar grava­ta, estava obviamente deslocado sem uma delas. Para não continuar parecendo um impostor, desisti do rum e pedi uma cerveja. O gar­çom me olhou de um jeito estranho, e na mesma hora entendi o porquê – nada do que eu vestia brilhava. Aquilo era, sem dúvida, a marca de uma ovelha negra. Para me dar bem por lá, precisaria conseguir algumas roupas cintilantes.

Às seis e meia, deixei o bar e saí do hotel. Já escurecia, e a grande avenida parecia arejada e graciosa. Do lado oposto da rua havia ca­sas que antigamente ficavam de frente para o mar. Agora ficavam de frente para hotéis, e a maioria delas tinha se enfurnado entre cercas vivas e muros que as separavam da rua. Aqui e ali era pos­sível enxergar um pátio ou uma varanda cercada de tela cheia de pessoas sentadas debaixo de ventiladores, bebendo rum. De repente, escutei sinos em algum ponto da rua. Era o badalar sonolento do “Acalanto” de Brahms.

Caminhei mais ou menos um quarteirão, tentando sentir o cli­ma daquele lugar, e os sinos ficaram mais próximos. De repente avistei um furgão de sorvetes avançando lentamente pelo meio da rua. Sobre o furgão havia um picolé gigante, piscando sem parar. A explosão de néon vermelho iluminava tudo ao seu redor. De algum lugar de suas entranhas saía a canção do senhor Brahms. Ao passar por mim, o motorista sorriu alegremente e tocou sua buzina.

Chamei um táxi na mesma hora e pedi ao motorista que me levasse ao coração da cidade. A velha San Juan é uma ilhota, liga­da à ilha principal por diversas estradas construídas sobre diques. Cruzamos pela estrada que sai de Condado. Dezenas de porto-ri­quenhos apinhavam as margens da estrada, pescando nas lagoas ra­sas, e à minha direita havia um enorme vulto com um néon em cima que anunciava o Caribé Hilton. Esta, eu sabia, era a pedra fundamental do grande boom. Conrad surgira como uma espécie de Jesus e foi seguido por todos os peixes. Antes do Hilton não havia nada, mas agora o céu era o limite. Passamos por um estádio deserto e logo chegamos a uma avenida larga e arborizada, ao lado de um despenhadeiro. De um lado ficava a escuridão do Atlântico, e do outro, mais além da cidade estreita, brilhavam as milhares de luzes coloridas dos navios de cruzeiro ancorados na zona portuá­ria. Deixamos a avenida e paramos em um lugar anunciado pelo motorista como Plaza Colón. Como a corrida custou um dólar e trinta centavos, estendi duas notas.

O motorista olhou para o dinheiro e sacudiu a cabeça.

“O que houve?”, perguntei.

Encolheu os ombros. “Sem troco, señor.”

Enfiei a mão no bolso – nem um centavo. Sabia que ele estava mentindo, mas não estava disposto a me aborrecer apenas para conseguir trocar um dólar. “Ladrão desgraçado”, falei, atirando as notas em seu colo. Ele encolheu os ombros novamente e partiu.

A Plaza Colón servia de eixo para diversas ruazinhas estreitas. Os prédios pareciam amontoados. Tinham dois ou três andares e sacadas que avançavam sobre a rua. O ar estava quente, e a brisa trazia um cheiro sutil de suor e lixo. Das janelas abertas escapava uma cantoria de música e vozes. As calçadas eram tão estreitas que era quase impossível deixar de pisar na sarjeta. Vendedores de frutas bloqueavam as ruas com suas carrocinhas de madeira, vendendo laranjas descascadas por cinco centavos.

Caminhei por trinta minutos, olhando vitrines de lojas que ven­diam roupas da “Ivy League”, bisbilhotando bares cheios de putas e marinheiros, desviando de pessoas nas calçadas e temendo desmaiar a qualquer momento se não encontrasse um restaurante.

Acabei desistindo. Parecia não haver restaurantes na Cidade Velha. A única coisa que encontrei se chamava New York Diner e estava fechada. Desesperado, fiz sinal para um táxi e pedi ao moto­rista que me levasse ao Daily News.

O motorista ficou me olhando, sem reação.

“O jornal!”, gritei, batendo a porta depois de entrar.

“Ah, sí”, murmurou. “El Diario, sí.”

“Não, diabos”, insisti. “O Daily News... o jornal americano... el News.”

Como o motorista nunca tinha ouvido falar do News, voltamos à Plaza Colón. Coloquei o corpo para fora da janela e perguntei o endereço a um policial. Ele também não sabia, mas acabamos encontrando um homem em um ponto de ônibus que nos disse onde ficava o jornal.

Descemos uma ladeira de paralelepípedos até chegar à zona portuária. Não havia sinal do jornal, e suspeitei que o motorista estivesse me levando até lá para se livrar de mim. Quando viramos uma esquina, ele pisou no freio de repente. Bem à nossa frente, em meio ao que parecia uma briga generalizada, uma multidão aos gri­tos tentava invadir um prédio velho e esverdeado com jeito de ser um armazém.

“Continue”, pedi ao motorista. “A gente consegue passar.”

Ele resmungou e sacudiu a cabeça.

Esmurrei as costas de seu assento. “Anda logo! Se não se mexer, não vou pagar.”

O motorista resmungou novamente, mas engatou a primeira e avançou até o início da rua, abrindo a maior distância possível entre nós e o tumulto. Parou quando estávamos ao lado do prédio. Per­cebi que a gangue, de uns vinte porto-riquenhos, estava atacando um americano alto vestido com um terno escuro. Ele estava parado nos degraus, sacudindo uma enorme placa de madeira como se fosse um taco de beisebol.

“Seus marginaizinhos desgraçados!”, gritou. Uma confusão se seguiu, e escutei pancadas e gritos. Um dos agressores desabou na rua, com o rosto ensanguentado. O sujeito grandalhão recuou na direção da porta, sacudindo a placa à sua frente. Quando dois ho­mens tentaram agarrá-lo, golpeou um deles no peito e derrubou-o pelos degraus. Os outros recuaram, gritando e sacudindo os punhos fechados. O homem rosnou: “Estou aqui, seus marginais... venham me pegar!”.

Ninguém se mexeu. O homem esperou por alguns momentos, ergueu a placa por sobre seu ombro e atirou-a no meio da multi­dão. Atingiu um dos agressores direto na barriga, derrubando-o por cima dos outros. Escutei gargalhadas, e o homem desapareceu dentro do prédio.

“Certo”, falei, olhando novamente para o motorista. “Podemos continuar.”

O motorista sacudiu a cabeça, apontou para o prédio e depois para mim. “Sí, aqui News.” Assentiu com a cabeça e apontou nova­mente para o prédio. “Sí”, repetiu, sério.

Percebi então que estávamos bem na frente do Daily News – meu novo lar. Dei uma olhada na turba furiosa entre mim e a porta e decidi voltar ao hotel. Só que, nesse momento, começou outra confusão. Um Fusca estacionou atrás de nós, e dele saíram três policiais, sacu­dindo cassetetes e berrando em espanhol. Parte da multidão correu, mas outros decidiram ficar para discutir. Assisti à cena por alguns instantes, estendi um dólar para o motorista e corri para dentro do prédio.

Uma placa indicava que a redação do News ficava no segundo an­dar. Peguei um elevador e fiquei me preparando para mergulhar em outra cena de violência. Mas a porta se abriu em um corredor escuro, e um pouco à minha esquerda escutei o barulho da redação.

Assim que entrei, me senti melhor. Havia uma desordem amis­tosa no lugar, um ruído constante de máquinas de escrever e teletipos. Até o cheiro era familiar. A sala era tão ampla que parecia vazia, embora eu enxergasse pelo menos dez pessoas. A única pessoa que não estava trabalhando era um homem baixinho, de cabelos pretos, sentado a uma mesa ao lado da porta. Estava reclinado na cadeira, olhando para o teto.

Cheguei mais perto e, assim que comecei a falar, ele se sacudiu na cadeira. “Certo!”, interrompeu. “O que você quer, porra?”

Encarei-o, um pouco irritado. “Amanhã começo a trabalhar aqui”, expliquei. “Meu nome é Kemp. Paul Kemp.”

O homem abriu um sorriso tênue. “Desculpe... achei que você queria pegar meus filmes.”

“O quê?”, perguntei.

Ele resmungou alguma coisa sobre ter sido roubado e precisar tomar cuidado com os outros.

Dei uma olhada ao redor. Todos pareciam bem normais.

O sujeito bufou. “Ladrões... malandros.” Levantou-se e esten­deu a mão. “Bob Sala, fotógrafo”, apresentou-se. “O que o traz aqui esta noite?”

“Estou atrás de um lugar pra comer.”

Ele sorriu. “Está sem dinheiro?”

“Não, estou rico... só não consigo achar um restaurante.”

Sala desabou de novo sobre a cadeira. “Você teve sorte. A pri­meira coisa que se aprende por aqui é evitar restaurantes.”

“Por quê?”, perguntei. “Disenteria?”

Ele riu. “Disenteria, chatos, gota, sarcoidose... você pode pegar qualquer coisa por aqui, qualquer coisa mesmo.” Olhou para seu reló­gio. “Espera só uns dez minutos que levo você até o bar do Al.”