17/01/2011
- Por L&PM Editores
Ele está quase chegando. Mais um Peanuts Completo vem aí trazendo novas tirinhas de Charlie Brown e sua turma. O volume 4 da série apresenta as histórias de Charles Schulz publicadas entre 1957 e 1958. É mais uma edição luxo, capa dura, que vai juntar-se aos três volumes anteriores. Enquanto ela não chega, leia abaixo a introdução do escritor Jonathan Franzen:
Seria o gênio criativo de Charles Schulz fruto de seus traumas psicológicos? Sem dúvida, o Schulz retratado em Good Grief (1989), a biografia autorizada escrita por Rheta Grimsley Johnson, era um poço de ressentimentos e fobias que, ao que tudo indica, devem-se a traumas vividos na juventude: a incapacidade de ser popular na escola, a magreza e as espinhas, a rejeição de seus desenhos para o anuário escolar, a morte da mãe às vésperas da incorporação de Shulz ao exército, a recusa de um pedido de casamento por parte da garotinha ruiva e por aí vai. O homem que se tornou o quadrinista mais amado do mundo se mostrava cada vez mais inclinado à depressão e ao mais amargo isolamento. (“Fico gelado só de ouvir falar em hotéis”, ele disse a Grimsley.) Embora tenha deixado Minnesota, sua terra natal, ele reconstruiu algumas de suas boas lembranças na Califórnia, como um rinque de patinação com um bar chamado “O Cachorrinho Fofo”. Já na década de 1970, Schulz se mostrava relutante até mesmo para subir em um avião caso não houvesse nenhum familiar com ele. Eis aqui – diria um psicólogo de fim de semana – um caso clássico em que uma patologia é responsável pela produção de arte de qualidade: magoado pelos traumas da adolescência, nosso herói se refugiou de forma permanente no mundo infantil de Peanuts.
Mas e se Schulz tivesse se tornado vendedor de brinquedos, e não um quadrinista? Ele ainda assim teria uma vida de tamanho isolamento e turbulência emocional? Desconfio que não. Acho que, como vendedor de brinquedos, Schulz suportaria os dissabores de uma vida normal da mesma forma como sobreviveu aos anos de serviço militar. Faria o que fosse preciso para sustentar a família – imploraria ao médico por uma receita de Valium, beberia alguns drinques no bar do hotel.
Schulz não era artista por ser um sofredor. Ele sofria porque era um artista. O ato de privilegiar a arte sobre o conforto de uma vida normal – criar uma tira por dia ao longo de cinquenta anos e lidar com as duríssimas sequelas psicológicas que isso causa – é exatamente o oposto do que uma pessoa traumatizada faria. É o tipo de escolha que somente alguém que fosse um pilar de sanidade e força mental seria capaz de levar adiante. Se as tristezas vividas na infância parecem ser a “fonte” do brilhantismo que Schulz demonstrou mais tarde, é porque ele teve talento e presença de espírito para transformar tudo isso em humor. Quase todo mundo carrega alguma mágoa da época da juventude. O que torna a infância de Schulz especial não é o sofrimento, mas o fato de ele adorar quadrinhos desde muito cedo, ter talento para desenhar e ser o filho único de pais dedicados.
Isso não significa que o depressivo e fracassado Charlie Brown, a egoísta e sádica Lucy, o filosófico e excêntrico Linus e o obsessivo Schroeder (cujas ambições, colossais como a obra de Beethoven, realizam-se em um piano de brinquedo) não sejam todos avatares de Schulz. Porém, seu verdadeiro alter ego é Snoopy: o farsante multifacetado cuja liberdade de ação se baseia no fato de ele ser uma criatura adorável, o mestre dos disfarces que, apenas pelo prazer de ser capaz de fazê-lo, pode se transformar em um helicóptero, ou em um jogador de hóquei, ou no Cão Maioral e então, em um piscar de olhos, antes que seu virtuosismo faça você se sentir intimidado, voltar a ser o cachorrinho faminto querendo o seu jantar.
Na página 183 deste volume há uma tira em que Snoopy agarra o cobertor de Linus com os dentes, o faz girar várias vezes pelo ar e o manda para a estratosfera, para mais tarde pensar: “Sou o primeiro cachorro da história a enviar um ser humano para o espaço!” A tira provavelmente se refere à cadela espacial russa Laika, que entrou em órbita em novembro de 1957, mas também poderia servir para descrever este livro como um todo. Nos anos 60, Peanuts quebraria a lei da gravidade e alcançaria um nível de popularidade que nem de longe possuía algum precedente, abandonaria toda e qualquer pretensão de retratar crianças e animais de forma realista e chegaria à velocidade de escape estilística na qual um artista se liberta da sombra de qualquer precursor que não seja ele mesmo. O que levou a tira a alçar voos tão altos foi, acima de tudo, o personagem Snoopy. Os anos de 1957 e 1958, cuja produção é reunida neste volume, marcam a transformação de Snoopy de um cachorro de histórias em quadrinhos para o espírito livre que viria nos anos seguintes. São os anos em que seu focinho atinge o tamanho máximo, dobrando ou triplicando o comprimento original. Ele ainda solta pelos, brinca de ir pegar a bola, corre atrás de pássaros e lambe as pessoas sem nenhuma razão; no entanto, pela primeira vez, ele começa a fazer coisas que em geral não são associadas ao comportamento canino – ele sobe no piano de Schroeder e toca violino, veste um uniforme para jogar beisebol. Paralelamente, a personalidade de cada uma das crianças adquire os contornos a que estamos acostumados, e Schulz começa a explorar as sequências narrativas mais longas e as piadas que se tornariam a marca registrada de sua obra inovadora (o cobertor de Linus, a pipa de Charlie Brown, a rivalidade entre Lucy e Beethoven, o amigo por correspondência de Charlie Brown, os jogos de beisebol).
Uma das piadas mais tradicionais, que começou a ser tema de diversas tiras em 1958, é a decepção anual de Charlie Brown ao não receber nenhum cartão de dia dos namorados. No livro Peanuts: A Golden Celebration, publicado pouco depois de sua morte, Schulz conta uma história de dia dos namorados protagonizada por ele mesmo. Quando estava na primeira série, sua mãe o ajudou a confeccionar cartões para todos os colegas, para que ninguém ficasse ofendido por não ter ganhado nada; no entanto, ele ficou com vergonha de colocar todos eles na caixa localizada na frente da sala e os levou de volta para casa. À primeira vista, essa história remete a uma tira da página 97 deste livro: Charlie Brown espia por cima de uma cerca e vê uma piscina cheia de crianças felizes; depois disso, vai para casa e senta-se sozinho em um balde com água. Porém, ao contrário de Charlie Brown, Schulz tinha uma mãe presente – e a quem ele escolheu dar a cesta cheia de cartões.
É improvável que um garoto profundamente ressentido por não receber cartões do dia dos namorados desenhe tirinhas divertidas sobre o tema depois de crescido. (Uma criança assim – a associação imediata é R. Crumb –, em vez disso, desenharia uma caixa de cartões que se transformaria em uma parte específica da anatomia feminina que devoraria os cartões e depois o próprio artista.) Por trás daquilo que normalmente se comenta a respeito dos dissabores de Schulz durante a infância, existe um jovem que recebeu todo o amor paternal possível e imaginável. A proximidade de sua família lhe deu forças; essa proximidade o ajudou a se alienar do restante do mundo. O amor alimenta a arte, que alimenta o estranhamento, que alimenta o perdão: as dádivas que Schulz recebeu se transformaram no presente que ele nos deixou.
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