22/01/2008
- Por L&PM Editores
O escritor norte-americano J.D. Salinger, convertido em clássico contemporâneo desde que O Apanhador no Campo de Centeio (1951) ganhou difusão planetária, é um dos mitos mais fecundos da literatura ocidental. De temperamento insociável e avesso a aparições públicas, nem mesmo lançou textos inéditos nas últimas quatro décadas, embora, ao que se saiba, mantenha originais escondidos da curiosidade alheia no cofre de casa, em Cornish (New Hampshire, EUA). A narrativa curta Hapworth 16, 1924, estampada nas páginas de The New Yorker em 1965 e jamais reunida em volume, assinalou o fim da carreira editorial do esquivo ficcionista, autor de cerca de outras duas dezenas de histórias espalhadas por revistas e antologias e nunca coligidas. A bibliografia oficial de Salinger é, portanto, constituída pelo romance que lhe deu aclamação internacional, a seleção de contos Nove Estórias (1953) e as novelas interligadas Franny & Zooey (1961), Carpinteiros, Levantem Bem Alto a Cumeeira e Seymour, Uma Apresentação (1963). Não obstante o legado parcimonioso, ele possui uma legião quase incondicional de admiradores.
Carpinteiros, Levantem Bem Alto a Cumeeira & Seymour, Uma Apresentação (L&PM, tradução de Jorio Dauster, 182 páginas, R$ 12,00) – também divulgadas como Pra Cima Com a Viga, Moçada! e Seymour, Uma Introdução, na edição da Brasiliense de 1984 – acrescentam novas informações sobre a família Glass, já dada a conhecer em Nove Estóriase Franny & Zooey (e Hapworth 16, 1924). Os Glass são formados pelos pais, Les e Bessie, e seus filhos Walt, Waker, Boo Boo, Franny, Zooey, Buddy e Seymour, de propensão às artes (seja a escrita, o teatro ou a dança). Carpinteiros, Levantem Bem Alto a Cumeeira, a melhor do lote, narra poucas horas na vida de Buddy, que, em pleno casamento de Seymour e Muriel, vê a cerimônia se dissolver devido à ausência do noivo. Seymour, Uma Apresentação se assemelha a um inventário entre biográfico e laudatório do integrante dos Glass, cujo suicídio havia ocorrido sete anos atrás, aos 31 anos, enquanto passava as férias ao lado da mulher, em um hotel. Seymour, nas duas, é revelado pelo olhar de Buddy, que o entende sob a ambigüidade dos adjetivos místico, desajustado e iluminado.
Salinger é mestre consumado em combinar dito e não-dito, em um estilo que dosa economia verbal a jogos elípticos de rara expressividade. Carpinteiros, Levantem Bem Alto a Cumeeira e Seymour, Uma Apresentação, se não exibem a força incisiva de O Apanhador no Campo de Centeio ou Nove Estórias, têm estatura para oferecer aos interessados elementos adicionais à obra mais difundida. Buddy e Seymour partilham com Holden Caulfield – o protagonista de O Apanhador no Campo de Centeio – um germe de inconformidade, de insubordinação espiritual, que decerto sempre terá algo a falar aos corações e mentes de todas as gerações, em particular aos jovens (não sem motivo a aventura de Caulfield conquistou amplo espaço a partir da descoberta dos estudantes dos Estados Unidos, que a cumularam de um fervor não menos do que religioso). Seymour, tal qual os mitos, suscita múltiplas interpretações, renova-se constantemente (seu homófono see more, “ver mais”, remete a “vidente” ou “visionário”, o que ele teria sido, ainda que Buddy enfrente dificuldades ao procurar propô-lo em palavras, algo por si só ilustrativo de um caráter complexo, inabarcável).
Para todos os efeitos, a posteridade escolheu O Apanhador no Campo de Centeio como título principal de Salinger, embora Nove Estórias ocupe um lugar confortável entre as coletâneas obrigatórias (Um Dia Ideal Para os Peixes-Banana, sobre os acontecimentos que precederam o suicídio de Seymour, e Para Esmé, Com Amor e Sordidez, a respeito de um soldado que conversa com uma moça em um café e parte depois para a guerra, merecem referência). Já a abertura de O Apanhador no Campo de Centeio é célebre (“Se querem mesmo ouvir o que aconteceu, a primeira coisa que vão querer saber é onde eu nasci, como passei a porcaria da minha infância, o que meus pais faziam antes que eu nascesse, e toda essa lenga-lenga tipo David Copperfield, mas, para dizer a verdade, não estou com vontade de falar sobre isso”, comparável à frase inicial de Anna Karênina, de Lev Tolstoi, “Todas as famílias felizes e se parecem, cada família infeliz é infeliz à sua maneira”). Uma vez lida, é difícil escapar ao poder de encantamento que a peculiar dicção de Salinger consegue exercer sobre o leitor, então, de maneira geral, irremediavelmente fisgado.
Caulfield é um rapaz de 17 anos recém-feitos, alto, desengonçado e mentiroso, que odeia cinema (e muito mais...), admirador de Thomas Hardy e O Grande Gatsby, ex-aluno do internato escolar de Pensey (de onde foi expulso). Filho de um rico advogado, ele volta incógnito para Nova Iorque, alguns dias antes de ter de enfrentar seus pais e lhes explicar por que “levou bomba” nos exames. No meio do caminho, visita um professor de História, conversa com a mãe de um colega no trem, rejeita os serviços de uma prostituta e convida uma ex-namorada para assistir a uma peça teatral. Gosta dos irmãos Phoebe e D.B., mas, sobretudo, dirige ao mundo circundante, nos dois dias em que dura o romance, uma série sem fim de impropérios (é curioso que ele seja prefigurado, em determinados traços, em outro idealista sentimental das letras estadunidenses, o alter ego de John Fante, Arturo Bandini, de Espere a Primavera, Bandini e Pergunte ao Pó). Desajustado e instintivo (como Seymour), imaturo e lírico, Caulfield é um sintoma de que algo vai mal na adolescência – meio século depois, sua voz de rebelde angustiado ainda se faz ouvir, ecoante e atualíssima.
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