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O tipo inesquecível

12/01/2007

- Por Henry Miller

O colosso de Marússia, de Henry Miller

Parecia falar de si mesmo o tempo todo, mas nunca de uma forma egoísta. Falava a respeito de si mesmo porque era a pessoa mais interessante que conhecia

Em Atenas fazia frio suficiente para vestirmos casacos. Como Nova York. Atenas tem um clima temperamental. Também tem uma boa quantidade de pó, se você decidir andar até os confins da cidade. Mesmo no centro, onde se vêem os edifícios mais modernos e luxuosos, as ruas às vezes não passam de estradinhas empoeiradas. A gente não pode chegar aos limites da cidade em menos de meia hora. É de fato uma cidade enorme, contendo quase um milhão de habitantes; cresceu um milhão de vezes desde o tempo de Byron. As cores predominantes são azul e branco, como no resto da Grécia. Até os jornais usam tinta azul, um azul-céu brilhante, que faz com que eles pareçam inocentes e joviais. Os atenienses praticamente devoram o jornal. Têm uma sede permanente de notícias. Do balcão do meu quarto do Grand Hotel, eu avistava a Praça da Constituição, que à tarde fica escura de gente, milhares de pessoas, sentadas em mesinhas carregadas de sorvetes e bebidas, os garçons voando com suas bandejas de um lado para outro, abastecendo-se nos cafés vizinhos à praça.

Foi aqui que, uma noite, encontrei Katsimbalis, que ia para Amaroussion. Foi um encontro e tanto. De encontros com homens, só me lembro de dois outros semelhantes na minha vida – quando conheci Blaise Cendrars e quando conheci Lawrence Durrell. Naquela noite, não tive muito a dizer. Ouvi fascinado, maravilhado, cada frase que ele dizia. Vi que era um homem feito para o monólogo, como Cendrars, como Moricand, o astrólogo. Gosto muito mais do monólogo do que do diálogo, quando ele é bom. É como ver um homem escrever um livro expressamente para você: ele escreve, lê em voz alta, representa alguns pedaços, revê o que escreveu, saboreia o que fez, fica feliz consigo mesmo e feliz em ver que você está feliz também, e em seguida rasga tudo e joga os pedacinhos no vento. É uma performance sublime, porque enquanto está ligado, você é Deus para ele – a menos que você seja um imbecil insensível e impaciente. Mas no tipo de monólogo ao qual me refiro, isso nunca acontece.

Naquela primeira vez, Katsimbalis foi um monte de coisas diferentes para mim; tinha o físico de um touro, a tenacidade de um abutre, a agilidade de um leopardo, a ternura de um carneiro e a timidez de um pombo. Tinha uma cabeça curiosamente grande, que me fascinou e que eu, por alguma razão, achei singularmente ateniense. Suas mãos eram relativamente pequenas em relação ao corpo, e incrivelmente delicadas. Era um homem poderoso, cheio de vitalidade, capaz de gestos brutos e palavras duras, mas que, de alguma forma, transmitia um sentimento de calor que era macio e feminino. Havia muito de trágico nele, também, que a sua mímica hábil apenas realçava. Era extremamente simpático e, ao mesmo tempo, duro como um campônio. Parecia falar de si mesmo o tempo todo, mas nunca de uma forma egoísta. Falava a respeito de si mesmo porque era a pessoa mais interessante que conhecia. Gostei muito dessa característica – eu próprio tenho um pouco dela.

Encontramo-nos alguns dias depois para jantar juntos – ele, sua mulher Aspasia e os Durrells. Depois do jantar, encontraríamos alguns amigos dele. Estava com toda a corda, desde o começo. Aliás, sempre estava assim, mesmo nos dias ruins, em que se queixava de dor de cabeça, ou tonteira, ou qualquer das mil e uma mazelas que o atormentavam. Estava nos levando para uma taberna no Pireu, explicou, porque queria que apreciássemos a cozinha grega à maneira grega. Era um de seus lugares favoritos – nos velhos tempos. “Eu cometi um erro enorme ao me casar – disse, a mulher escutando e sorrindo com complacência. “Não fui feito para o casamento, está acabando comigo. Não posso dormir, não posso fumar, não posso mais beber... Estou acabado.” Sempre falava de si mesmo como de alguém acabado: era uma introdução que o levava ao monólogo, uma espécie de aquecimento. Coisas acontecidas ainda ontem caíam nesse mesmo passado nostálgico de coisas “acabadas”. Às vezes, quando falava assim, me dava a impressão de ser uma enorme tartaruga que havia saído de sua carapaça, uma criatura que estava se consumindo numa luta desesperada para voltar à casca, já pequena. Nessa luta, sempre se fazia ridículo e grotesco de propósito. Ria de si mesmo, à maneira trágica dos palhaços. Todos ríamos, sua mulher também. Por mais triste, ou mórbida, ou patética que fosse a história, conseguia nos fazer rir o tempo todo. Ele via o lado engraçado de tudo, o que é o verdadeiro teste da veia trágica.

A comida...era apaixonado por comida. Ele apreciava boa comida desde criança, e tenho a impressão de que vai continuar apreciando até morrer. Seu pai foi um grande gourmet, e Katsimbalis, embora não tivesse, talvez, parte do seu refinamento sensual, estava dando continuidade à tradição familiar. Entre grandes garfadas carnívoras, batia no peito como um gorila, depois bebia um gole monumental de rezina. Bebera muita rezina no seu tempo; dizia que fazia bem, bem para os rins, para o fígado, para os pulmões, para os intestinos e para a mente, era bom para tudo. Tudo o que ingeria era bom, fosse veneno ou ambrosia. Não acreditava em moderação ou bom senso ou qualquer coisa inibitória. Acreditava em ir até o fim da linha e, eventualmente, aceitar a punição por isso. Havia um monte de coisas que não podia fazer mais – a guerra o deixara meio avariado. Mas tirando o braço ruim, o joelho deslocado, o olho inutilizado, o fígado atrapalhado, as crises de reumatismo, os problemas da artrite, a enxaqueca, a tonteira e Deus sabe o quê, o que escapara à catástrofe estava muito bem, obrigado. Ele podia chamar a atenção dos mortos com a sua conversa. Tratava-se de uma espécie de processo alimentar: quando descrevia um lugar, o devorava, como uma cabra atacando um tapete. Se descrevia uma pessoa, a engolia da cabeça aos pés. Se por acaso estivesse falando de algum acontecimento, consumia-o nos mínimos detalhes, como um batalhão de formigas lutando com uma floresta. Estava em todos os lugares ao mesmo tempo, enquanto falava: atacava por cima e por baixo, pela frente, por trás e pelos flancos. Se não podia liquidar logo com alguma coisa, jogava-a para escanteio, temporariamente, para voltar a ela mais tarde e transformá-la em picadinho. Ou como prestidigitador, atirava-a ao ar e, quando você já estivesse achando que a esquecera, que ela iria cair e se espatifar, ele punha um braço por trás das costas para pegá-la, sem piscar um olho. Ele não manobrava só a conversa, mas a linguagem – linguagem da cama e mesa, para usar e abusar. Falava sempre da paisagem, como o progatonista de um mundo perdido. A paisagem da Ática era a que melhor servia aos seus propósitos: continha os elementos necessários ao monólogo dramático. Basta ver seus teatros ao ar livre, enterrados nas encostas, para se dar conta da importância deste cenário. Mesmo que a conversa o levasse a Paris, por exemplo, para um lugar como o Faubourg Montmartre, ele o temperava e lhe dava o sabor de seus ingredientes áticos, com sálvia, tomilho, mel, barro, telhados azuis, ciprestes, luz violácca, pedras quentes, ventos secos, poeira, rezina, artrite e as descargas elétricas que brincam pelos montes como rápidas serpentes de espinha partida. Ele todo era uma imensa e estranha contradição, mesmo no que dizia. Com a sua língua viperina, ligeira como o raio, seus dedos movendo-se rápidos, como se passeassem sobre uma espineta imaginária, com gestos vibrantes e brutais que, de certa forma, nunca esmagavam nada, com toda a fúria da rebentação, cheio de lusco-fuscos e pisca-piscas, mas se de repente você o observasse atentamente, teria a impressão de que estava sentado na maior imobilidade possível, de que apenas os seus olhos de falcão se mexiam, de que era um pássaro hipnotizado ou, melhor, um pássaro que se hipnotizara a si mesmo, e que suas garras estavam presas ao pulso de um gigante invisível, um gigante como a terra. Todo esse estrépido esvoaçante, toda a sua prestidigitação caleidoscópica não passavam de uma mágica que usava para ocultar o fato de que era um prisioneiro. Foi essa a impressão que me deu quando o observei de forma mais cuidadosa, quando consegui quebrar por um instante o encantamento e prestar atenção. Mas quebrar o encanto exigia uma força e uma mágica quase iguais às dele; e trazia em si a sensação de impotência e inutilidade que sempre sentimos quando conseguimos destruir a força da ilusão. Nunca se destrói a mágica – o máximo que conseguimos fazer é nos cortar dela, amputar as misteriosas antenas que nos ligam a forças que estão além da nossa compreensão. Muitas vezes, enquanto Katsimbalis falava, eu olhava para o rosto de algum dos ouvintes e percebia que fios invisíveis haviam sido ligados, que algo estava sendo comunicado além da linguagem, além da personalidade, algo mágico que reconhecemos nos sonhos e que faz com que as feições de quem sonha relaxem e desabrochem de uma forma que raramente vemos nas pessoas acordadas. Ao meditar sobre essa sua qualidade, lembrei-me das alusões que fez ao mel incomparável que é estocado pelas abelhas nas encostas dos seus amados Hymettos. Volta e meia, tentava explicar as razões pelas quais esse mel do monte Hymettos seria único. Mas ninguém consegue explicá-lo de forma satisfatória. Ninguém pode explicar o que é único. A gente pode descrever, louvar e adorar. E isso é tudo o que eu posso fazer em relação às palavras de Katsimbalis.

Passei a apreciar o monólogo katsimbalístico ainda mais depois que voltei para Corfu, e que tive uma boa dose de solidão. Deitado nu, ao sol, numa rocha à beira-mar, fechava os olhos e tentava tecer novamente o padrão da sua conversa. Foi aí que percebi que as suas palavras criavam reverberações, e que o eco demorava a atingir os ouvidos. Comecei a compará-las às palavras francesas que me envolveram durante tanto tempo. A conversa francesa parecia mais a luz brincando num vaso de alabastro: algo reflexiva, dançante, líquida, evanescente, ao passo que a conversa katsimbalística era opaca, nublada, grávida de ressonâncias que só podiam ser compreendidas muito tempo depois, quando as reverberações anunciavam a colisão com pensamentos, pessoas, objetos situados em diferentes partes do globo. O francês põe muralhas em torno da conversa, assim como põe muralhas em torno do jardim. Põe limites em tudo, para se sentir em casa. No fundo, falta-lhe confiança no seu semelhante; é cético, porque não acredita na bondade intrínseca do ser humano. Tornou-se realista, porque isso é prático e seguro. O grego, por outro lado, é um aventureiro: é atirado e se adapta com facilidade, faz amizades rapidamente. Os muros que se vêem na Grécia, quando não são de origem turca ou veneziana, remontam à era ciclópica. Por experiência própria, eu diria até que não há homem mais direto e fácil de se lidar do que o grego. Ele fica seu amigo imediatamente; vai ao seu encontro. Com o francês, a amizade é um processo longo e laborioso: pode-se gastar uma vida tentando conquistar a sua amizade. Ele é melhor em relacionamentos que envolvem poucos riscos e poucas chances de continuidade. A própria palavra ami tem uma conotação muito diferente da palavra inglesa friend. C’est mon ami não pode ser traduzido por This is my friend. Não há equivalente para essa frase inglesa na língua francesa. É uma lacuna que nunca foi preenchida, como a palavra home.* Essas coisas afetam a conversa. A gente pode falar com a noite inteira, mas é difícil ter uma conversa que bata lá no fundo do coração. Costuma-se dizer que toda a França é um jardim, e se você gosta da França, como eu gosto, pode ser um belo jardim. Eu a acho repousante e tranqüilizadora; lá recuperei-me dos choques e das escoriações sofridas em meu próprio país. Mas chega um dia em que você se acha de novo forte e bem disposto, e aí essa atmosfera deixa de ser estimulante; você anseia por libertar-se e testar as suas forças. Aí o espírito francês me parece inadequado. Você quer fazer amigos, criar inimigos, olhar além dos muros e da terra cultivada. Você quer deixar de pensar em termos de seguro de vida, contribuições previdenciárias, aposentadoria e assim por diante.

Depois do suculento jantar na taberna do Pireu, todos meio grogues de rezina, voltamos para a praça em Atenas. Era em Atenas. Era meia-noite, ou um pouco mais, mas a praça ainda estava fervilhante de gente. Katsimbalis pareceu adivinhar o lugar onde os amigos se encontravam. Fomos apresentados aos seus camaradas, George Seferiades e o Capitão Antoniou, do bom navio Acrópolis. Logo começaram a me fazer perguntas a respeito da América e dos escritores americanos. Como a maioria dos europeus de boa formação, eles sabiam mais a respeito da literatura americana do que eu jamais saberei. Antoniou já tinha estado na América várias vezes, passeara pelas ruas de Nova York, Boston, Nova Orleans, São Francisco e outros portos. A idéia de vê-lo caminhando nas nossas ruas, no maior encanto, me fez lembrar o nome de Sherwood Anderson, que sempre considerei o único escritor americano do nosso tempo que percorreu as ruas das nossas cidades como um verdadeiro poeta. Como eles mal conheciam o seu nome, e como a conversa estava se encaminhando para um terreno mais familiar, isto é, Edgar Allan Poe, assunto a respeito do qual já estou cansado de ouvir falar, fiquei subitamente obcecado com a idéia de apresentá-los a Sherwood Anderson. Para variar, comecei eu um monólogo – a respeito de escritores que andam pelas ruas da América e não as conseguem sentir até estarem a um passo da sepultura. Fiquei tão entusiasmado com o assunto que me identifiquei com Sherwood Anderson. Ele, provavelmente, teria se admirado muito se ouvisse as aventuras que eu estava lhe atribuindo. Sempre tive um fraco pelo autor de Many Marriages. Nos meus piores dias da América, ele foi a pessoa a me confortar, através de seus escritos. Primeira vez há pouco tempo: não encontrei nenhuma discrepância entre o homem e o escritor. Nele, vi o contador de histórias nato, o homem que pode fazer até o ovo triunfar.

Como eu ia dizendo, fui falando de Sherwood Anderson, como um rio que corre para o mar. Eu estava me dirigindo, principalmente, ao Capitão Antoniou. Lembro-me do olhar que me deu quando acabei, aquele olhar que dizia: “Está feito, fico com todo o lote, pode embrulhar”. Desde então, tenho me deleitado relendo Sherwood Anderson através dos olhos de Antoniou. Ele está sempre viajando de uma ilha para outra, escrevendo poemas enquanto percorre cidades estranhas, à noite. Uma vez, alguns meses depois, eu o encontrei por alguns minutos no porto de Herakleion, em Creta. Ainda em Creta. Ainda estava pensando em Sherwood Anderson, embora falasse de cargas e informes meteorológicos e suprimentos de água. Uma vez ao mar, eu podia imaginá-lo indo para sua cabine e, catando um livrinho da estante, mergulhar na noite misteriosa de uma cidade sem nome em Ohio. A noite sempre me deixava com um pouco de inveja dele, inveja da sua paz e da sua solidão marinha. Invejava as ilhas em que desembarcaria, e os passeios solitários através de aldeias cujos nomes não significam nada para nós. Ser piloto foi a primeira ambição que tive na vida. Gostava da idéia de estar sozinho na casinhola acima do convés, guiando o navio em sua rota cheia de perigos. Estar consciente do tempo, envolvido por ele e lutando com ele – isso era tudo para mim. E nos escritos de Sherwood Anderson há sempre vestígios do tempo. Gosto dos homens que carregam o tempo no sangue...

Separamo-nos às primeiras horas da manhã. Voltei para o hotel, abri a janela, e fiquei debruçado durante algum tempo, contemplando a praça agora deserta. Fizera dois novos amigos gregos, e estava satisfeito. Comecei a pensar em todos os amigos que já havia feito desde a minha chegada. Pensei em Spiro, o chofer de táxi, e em Karemenaios, o guarda. Havia também Max, o refugiado, vivendo como um príncipe no King George Hotel; parecia não ter outra preocupação na vida além de tornar os amigos felizes com os dracmas que não podia retirar do país. E também o proprietário do hotel onde eu estava que, ao contrário de qualquer hoteleiro francês que já conheci, volta e meia me perguntava: “Você precisa de algum dinheiro?”. Se eu lhe dizia que planejava fazer uma viagem, a observação era inevitável: “Não se esqueça de me telegrafar se precisar de dinheiro”. Spiro era a mesma coisa. Quando nos despedimos no cais, na noite do pânico geral, suas últimas palavras foram: “Sr. Henry, se o senhor voltar a Corfu quero que fique comigo. Não quero dinheiro algum, sr. Henry – quero que o senhor venha morar com a gente pelo tempo que quiser.” Em qualquer lugar que eu visitasse na Grécia, esse era o tom habitual. Mesmo na prefeitura, enquanto esperava que meus papéis fossem postos em ordem, mandavam vir café e cigarros para que me sentisse à vontade. Eu também gostava da maneira como mendigavam. Não tinham vergonha. Os gregos o param abertamente no meio da rua, pedindo dinheiro ou cigarros como se isto fosse um direito estabelecido. Quando as pessoas pedem assim, é bom sinal: mostra que sabem dar. Os franceses, por exemplo, não sabem nem pedir, nem fazer favores – sentem-se pouco à vontade em qualquer uma das situações. Fazem questão de não atrapalhar – e o muro novamente. Um grego não tem muros em torno de si: dá e toma sem traumas.

Os ingleses da Grécia – que aliás não são flor que se cheire – parecem não ter o caráter grego em muito bom conceito. Os ingleses são moles, destituídos de imaginação e não têm a menor elasticidade. Parecem pensar que os gregos lhe deveriam ser eternamente gratos por terem uma esquadra poderosa. O inglês da Grécia é uma farsa, um atentado: não vale a poeira entre os dedos do pé de um grego pobre. Durante séculos, os gregos tiveram o pior inimigo que alguém pode ter – os turcos. Depois de séculos de escravidão, livraram-se dos grilhões e, se as Grandes Potências não tivessem interferido, teriam arrasado com eles. Hoje, depois de uma extraordinária mudança de população, os dois povos são amigos. Eles se respeitam. E no entanto os ingleses, que teriam desaparecido da face da Terra se houvessem sido submetidos ao mesmo martírio, pretendem ser superiores aos gregos.

Qualquer lugar da Grécia possui uma atmosfera repleta de feitos heróicos. Estou falando da Grécia moderna, não da Grécia antiga. E as mulheres, se a gente estudar a história deste pequeno país, foram tão heróicas quanto os homens. Na verdade, tenho um respeito ainda maior pela mulher grega do que pelo homem grego. A mulher grega e o sacerdote ortodoxo grego – eles sustentaram o espírito de luta. Não há maiores exemplos de teimosia, coragem, temeridade, audácia, em lugar nenhum. Não é de admirar que Durrell quisesse lutar a seu lado. Quem não preferiria lutar ao lado de uma Bouboulina, por exemplo, do que ao lado de uma turma de recrutas doentios e efeminados vindos de Oxford ou Cambridge?

Não fiz amigos ingleses na Grécia. Cada vez que me pilhavam junto a eles, sentia-me culpado junto aos gregos. Os amigos que fiz na Grécia são gregos, e sinto-me orgulhoso deles, honrado pelo fato de me considerarem um amigo. Espero que os poucos ingleses que conheci por lá se dêem conta, ao lerem estas linhas, do que penso a seu respeito. Espero que me considerem um inimigo da sua raça.

Mas eu preferia falar de algo mais interessante – Katsimbalis, por exemplo, e a visita a sua casa em Marússia, ao entardecer. Outro dia maravilhoso, outra data marcada com destaque na minha vida. Ele nos pediu que chegássemos cedo, para vermos o pôr-do-sol. Stephanides havia traduzido alguns poemas gregos – iríamos ouvi-los em inglês. Quando chegamos, Katsimbalis ainda não havia acabado a sesta. Ficou meio envergonhado de ser flagrado dormindo, porque vivia se vangloriando da pouca quantidade de sono de que necessitava. Desceu meio zonzo, falando consigo mesmo, fazendo pequenos gestos fúteis com as mãos, como se quisesse colocar em movimento a droga da espineta. Resmungara algo a respeito de uma palavra de que se lembrara há alguns instantes, no sono. Vivia vasculhando o cérebro à cata de palavras e expressões adequadas, em inglês, para descrever alguma notável imagem grega que acabara de encontrar. De qualquer jeito, como eu ia dizendo, nós o havíamos acordado, e ele, que dormia a sono solto, agora se movia como se estivesse drogado, murmurando e gesticulando, como um homem tentando se livrar das teias de aranha que ainda o envolviam. A conversa começou nas pontas do sonho que não havia abandonado de todo. Para deslanchar uma conversa, a gente pode começar em qualquer lugar, e já que estivera sonhando, ele começou pelo sonho. O sonho, em si mesmo, não tinha a menor importância, mas a lembrança do sonho o levara de volta à palavra que o perseguia há dias, e que se tornava mais clara à medida que sua cabeça se tornava mais clara, livre das teias de aranha. A palavra, qualquer que fosse a linguagem, e linguagem levou a mel, e mel fazia bem, assim como outras coisas, rezina, por exemplo, especialmente rezina, bem para os pulmões, bem para o fígado, bem para qualquer coisa que estivesse atrapalhando, principalmente em grandes quantidades, coisa que, aliás, ninguém devia fazer, tomá-la em grandes quantidades, mas que ele fazia, a despeito das ordens médicas, especialmente se fosse uma rezina boa como aquela que a gente tinha bebido no outro dia na taberna, no Pireu. Por falar nisso, o carneiro estava muito bom também, a gente tinha reparado? Fez como se lambesse os dedos, limpou a boca com as costas da mão, cheirou no ar como se quisesse sentir novamente os cheiros que vinham do forno. Parou um momento e olhou em torno, como se estivesse procurando alguma coisa para beliscar antes de continuar a falar. Ninguém disse nada. Ninguém teve coragem de interromper agora, exatamente quando ele estava começando a ficar empolgado. Os poemas estavam em cima da mesa. A qualquer instante, Seferiades deveria aparecer, trazendo o capitão consigo. Percebi que estava um pouco inquieto, imaginando se teria tempo de falar o que queria antes que os amigos chegassem. Estava intranqüilo, como um pássaro com a asa presa. Continuou resmungando e gesticulando, apenas para manter a máquina aquecida até que decidisse que direção tomar. E de repente, sem que nos déssemos conta da transição, estávamos de pé na varanda, olhando os montes à distância. Num deles havia um moinho solitário. Katsimbalis estava em pleno vôo, numa incrível performance a respeito da atmosfera límpida e dos tons violáceos que desciam com a noite, a respeito de tipos ascendentes e descendentes de monotonia, a respeito de ervas e árvores individualistas e frutas exóticas, e viagens e tomilho e mel, e a seiva de uma planta que nos embebeda, a respeito de pessoas das ilhas e das montanhas, a respeito dos homens do Peloponeso, a respeito da russa enlouquecida que, uma noite, ficou afetada pela lua, tirou toda a roupa e começou a dançar, peladinha, enquanto o seu companheiro ia correndo buscar uma camisa de força. Enquanto falava, eu via pela primeira vez. com meus próprios olhos, o verdadeiro esplendor da paisagem ática, observando, cada vez mais animado, que aqui e ali, sobre os montes enferrujados, entre uma vegetação anômala e excêntrica, homens e mulheres, figuras perdidas e solitárias, caminhavam na luz evanescente. Por alguma razão, eles me pareceram muito gregos, andando de um jeito que nenhum outro povo poderia andar, recortando silhuetas contra o seu cenário etéreo, silhuetas iguais às que eu observara, pela manhã, nas ânforas do museu. Há muitas maneiras de se passear, e a melhor, na minha opinião, é a grega, porque não tem objetivo, é inteiramente anárquica e muito humana. E esse passeio entre as árvores deselegantes, a folhagem esvoaçante como uma grande cabeleira despenteada, nas encostas das montanhas distantes, se misturava curiosamente com o monólogo de Katsimbalis, que eu ouvia, digeria e silenciosamente comunicava às figuras que desapareciam suavemente com a luz... Na varanda, no alto de Marússia, no momento em que as luzes de outros mundos começavam a brilhar, captei a Grécia antiga e a Grécia moderna em sua leveza translúcida, e assim elas permanecem na minha memória. Descobri naquele instante que não há antigo ou moderno, apenas Grécia, um mundo concebido e criado na eternidade. O homem que falava deixara de ter qualquer dimensão humana, transformando-se num colosso cuja silhueta movia-se para frente e para trás, ao ritmo profundo das suas palavras hipnóticas. Ele prosseguia, sem pressa, inexaurível, inextinguível, uma voz que tomara forma e substância, uma figura que ultrapassara a sua moldura humana, uma sombra cujas reverberações ecoavam nas profundezas dos vales distantes.

* N. T. – C’est mon ami. This is my friend: as duas frases significam Este é meu amigo. A palavra friend, entretanto, tem uma conotação mais íntima, mais calorosa do que ami. Home quer dizer, basicamente, lar, mas pode ser também pátria, a cidade em que se vive, o canto de cada um.

Tradução: Cora Rónai