05/12/2006
- Por Vivian Rangel
Carlos Fuentes lança abecedário que resgata lembranças e fala de arte, filosofia e política
Em uma biografia atemporal e fragmentada por temas, o mexicano Carlos Fuentes parece ter organizado notas de uma vida inteira – ou 78 anos – no recém-lançado Este é meu credo (Rocco). Mas ele garante que não. No abecedário que mistura política, filosofia e confissões, o escritor contou apenas com a memória.
Em ensaios, ele mergulha no seu segundo líquido amniótico, a política, e fala sobre o México e a globalização. A literatura está nas homenagens a Dom Quixote e nas lições de Balzac. Sobre a mocidade, revelações de um tempo onde era “passageiro do sexo”. E ainda uma comovente tentativa de explicar o amor por seu único filho homem, morto ainda jovem.
Em entrevista por telefone ao Globo, de sua casa na Cidade do México, o escritor falou sobre suas crenças, glorifica o cavaleiro da triste figura, filosofa sobre o tempo e a memória e ainda manda um recado ao presidente George W. Bush.
Exceto por Diana ou a caçadora solitária (inspirado no seu romance com a atriz Jean Seberg), o senhor não tem outras obras declaradamente autobiográficas. Por que falar da vida pessoal em Este é meu credo?
CARLOS FUENTES – O livro não poderia existir sem os capítulos autobiográficos. Eu precisava dizer: acredito nos meus filhos, no meu país, na minha esposa. São textos inéditos, impostos pela ordem alfabética e ao mesmo tempo pelas lembranças.
Um dos temas mais recorrentes em seu livro é a memória. Por quê?
FUENTES – Me sento para escrever e enfrento o paradoxo entre a memória do futuro e a imaginação do passado. Recolho o passado ao mesmo tempo em que imagino o futuro. Em meus livros, o autor está no presente transitando por esses tempos, assim como o leitor. Esse navegar é claro: o próximo leitor de Dom Quixote ainda não nasceu. Este é meu credo foi todo escrito a partir da minha memória.
O senhor cita Dom Quixote em vários textos. Considera-o o mais importante livro escrito?
FUENTES – Dom Quixote funda o romance moderno, mistura o épico e o picaresco em uma novela histórica. Dentro dele há várias camadas e ainda um olhar crítico sobre a narrativa. Ele é pai e mãe de todos os romances que vieram depois.
Um dos textos trata das semelhanças entre as obras de Shakespeare e Cervantes.
FUENTES – Se fizermos um cálculo entre os diferentes calendários veremos que Cervantes e Shakespeare morreram no mesmo dia. Quem sabe foram a mesma pessoa? (risos) Ninguém fala sobre a peça que Shakespeare escreveu baseada no livro de Cervantes. Isso prova que eles não só eram contemporâneos como conheciam a literatura um do outro. Havia uma grande comunicação entre os escritores daquela época. Não é como hoje, quando os escritores são silenciados pelos meios de comunicação.
Outro escritor a quem o senhor recorre muito é Balzac.
FUENTES – Balzac me mostrou que é possível escrever romances sociais e realistas. E que é impossível classificar um escritor como realista ou não. Dom Quixote não existe sem Cervantes, Hamlet não existe sem Shakespeare. E você pode imaginar o mundo sem eles?
No artigo sobre cinema o senhor declara seu desencanto com o cinema falado. Não seria uma opinião saudosista?
FUENTES – Com raras exceções – como o Cidadão Kane, de Orson Welles – o que o cinema mudo nos deu em termos de beleza e emoção o cinema falado não pode nos dar. Com o som, algo se perdeu. Gosto de diretores atuais, como Martin Scorsese e Almodóvar, mas hoje o cinema não tem a mesma magia.
Nos artigos sobre política o senhor fala sobre a necessidade de mudanças urgentes na globalização. Quais seriam?
FUENTES – A globalização é um fato – está aqui e não vai se mudar. O problema é que ela existe mais do que nunca no comércio e não na dimensão humana. Entre Estados Unidos e México há um tratado comercial no qual produtos chegam e saem facilmente, mas não as pessoas. Não há globalização da força de trabalho, das sociedades, das culturas.
Como o senhor, que escreveu A fronteira de cristal, um livro de contos ambientado na fronteira entre EUA e México, vê a construção de um novo muro entre os países?
FUENTES – Sabe o que eu gritaria para o Bush se pudesse? “Senhor Bush, derrube esse Muro de Berlim!” É um erro de três mil quilômetros que não vai impedir a migração. A necessidade de mão-de-obra mexicana é enorme. Sou a favor de uma migração regulada, se possível, por um sindicato internacional Além disso, o México precisa melhorar a oferta de mão-de-obra e expandir a economia.
Todas las familias felices acaba de ser lançado na Espanha. Gostaria que o senhor falasse um pouco sobre ele.
FUENTES – O livro não é uma coletânea de contos nem um romance – é uma narrativa de coros, vozes da cidade que se relacionam. São falas de protesto, como o rap. Os personagens se repetem e se encontram. É uma narrativa extremamente violenta que poderia se passar na Cidade do México, em Lima ou no Rio de Janeiro. São as vozes do silêncio, dos esquecidos.
Entrevista extraída do jornal O Globo. Caderno Prosa&Verso, 25 de novembro de 2006.
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