O Grêmio de todas as cores
O GRÊMIO foi fundado quinze anos depois da abolição da escravatura no Brasil. Não havia sede, não havia lugar de reunião, não havia nada. O único patrimônio do clube era uma bola de futebol, a primeira surgida em Porto Alegre, trazida pelo paulista Cândido Dias. Os fundadores não eram empresários, nem nababos, não tinham posses. Eram jovens que se encontravam no restaurante Dona Maria, no Centro, e que tinham ficado entusiasmados com um evento ocorrido no feriado de Independência de 1903. Naquele dia, o Sport Club Rio Grande, que viera à capital numa custosa viagem de vapor, fizera uma apresentação do novíssimo esporte criado na Inglaterra e que fora trazido ao Brasil pelo centroavante bigodudo Charles Miller oito anos antes.
A apresentação do Rio Grande foi tão empolgante que dois grupos de amigos resolveram organizar clubes de futebol: os comerciários liderados por Cândido Dias, que fundaram o Grêmio, e alguns alemães e descendentes de alemães, que fundaram um clube denominado Fussball. Os dois clubes nasceram no mesmo dia, 15 de setembro de 1903.
A ideia inicial desses dois clubes era promover encontros internos. Eles não jogavam nem um contra o outro. Os amigos jogavam entre si, como garotos de subúrbio. Não existia campeonato, nem torneio, nem mesmo amistoso. Mais tarde é que o Grêmio e o Fussball decidiram se enfrentar, colocaram uma taça em disputa, e o Grêmio venceu. Mas era uma partida por semestre, imagine.
Esse começo mais do que amador, quase casual, talvez fosse suficiente para mostrar que a intenção dos jovens fundadores era apenas recreativa. Jamais um clube, nessas circunstâncias, seria concebido com intenção de ser democrático, antidemocrático ou de alguma forma ideológico. A ideia era bater uma bolinha com os amigos.
Como disse no início, fazia apenas quinze anos que a escravidão havia sido abolida. Negros e brancos não participavam de atividades conjuntas simplesmente porque não seria natural que isso ocorresse. A separação entre negros e brancos era encarada com normalidade e era até esperada.
Quando outros clubes de Porto Alegre foram fundados, entre eles o Inter, essa situação pouco havia mudado. No Inter também não havia negros de forma “oficial”. Os negros estavam restritos à sua própria associação, a Liga da Canela Preta. Isso futebolisticamente falando. Socialmente, os negros se reuniam no clube Floresta Aurora, enquanto os brancos se encontravam nos bailes do Juvenil e da Sogipa. Era assim que era.
O mundo mudou. O Brasil mudou. Porto Alegre mudou também. Em 1939, o Inter, cansado de perder para o Grêmio de Foguinho, Lara e Luiz Carvalho, e em crise financeira, buscou uma saída barata e inteligente para se reforçar: trouxe da Liga da Canela Preta um jovem ponta conhecido como “Tesourinha”. Se ele não foi o primeiro negro a jogar na dupla Gre-Nal, foi o primeiro a vir da liga exclusiva dos negros, que, a partir desse fato, acabou se dissolvendo. Na década seguinte, o mesmo Tesourinha foi para o Grêmio, e assim, com esse negro ilustre, escancarou-se a abertura que já havia no clube para pessoas de todas as cores. A partir de então, o Grêmio tornou-se o que é: um clube de massa, uma das maiores torcidas do Brasil e uma das potências futebolísticas do mundo.
O Léo Gerchmann, que é tão apaixonado pelo Grêmio quanto pela luta contra todos os preconceitos, conta essa história no livro "Somos azuis, pretos e brancos". Ele desmonta a tese de que o Grêmio foi fundado com base na discriminação, e o faz com documentos e evidências históricas. E com um texto saboroso, porque quem ama o tema sobre o qual escreve só pode escrever bem. E o Léo tem o Grêmio no coração. Um coração azul, branco e, o que é importante não ser nunca esquecido, preto também.
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