Queronéia, cidadezinha da Beócia, região situada ao norte da Ática, bem acima de Atenas, foi palco de uma batalha histórica, decisiva para o destino da Grécia Antiga. Lá, na data de 2 de agosto de 338 a.C., a célebre falange macedônica pôs fim à confederação de cidades-Estado gregas que lhe resistia. Tendo os altos do Monte Parnaso como testemunha muda, o rei Filipe II em poucas horas de combate destroçou um exército tebano-ateniense com relativa facilidade. No entrechoque que durou apenas meio-dia, destacou-se o príncipe Alexandre, um rapaz de apenas dezoito anos, responsável pela carga que massacrou o célebre Batalhão Sagrado de Tebas (formado por uns trezentos tebanos, a tropa de elite da cidade). Filipe II, encerrada a matança, ao deparar-se com os cadáveres dos bravos tebanos, não pôde evitar as lágrimas frente à inútil coragem deles.
O vencedor Filipe foi magnânimo. Prometeu aos vencidos respeitar-lhes as liberdades cívicas desde que se comprometessem a acompanhá-lo na futura campanha que arquitetava contra o Império Persa (não teve tempo para isso, visto que logo foi assassinado, no ano de 336 a.C.).
A batalha de Queronéia, na verdade, apesar das promessas do rei macedônico, marcou o fim da autonomia das cidades gregas. Zeus Eleutério, o libertador, havia abandonado seus filhos.
O simbolismo de Queronéia
Quase quatro séculos depois deste desastre militar, nessa mesma cidadezinha que o destino assinalara como o começo do fim da independência da Hélade, nasceu o filósofo e historiador Plutarco: Plutarco de Queronéia (50-125), como ele ficou mundialmente conhecido.
Descendia de família ilustre, abonada o suficiente para proporcionar-lhe diversas incursões de estudo e aperfeiçoamento em vários centros culturais, tal como a viagem a Atenas que ele fez aos dezoito anos. Lá tornou-se discípulo de Amônio, então presidente da Academia platônica. Os tempos, todavia, eram outros, pois de há muito desaparecera o domínio macedônio. Na época de Plutarco, eram os romanos que mandavam na Hélade.
A pretendida Monarquia Universal de Alexandre dera lugar, depois das quatro guerras vitoriosas travadas pelos romanos contra os macedônios (entre 215 e 148 a.C.), ao Império Mundial dos césares. A Hélade deixou de ser governada pelos diádocos de Alexandre para cair nas mãos dos procônsules a serviço do Senado romano. Talvez o fato de Plutarco ter vindo ao mundo exatamente no local da histórica capitulação dos gregos explique de certo modo a sua adesão entusiasta aos novos senhores. Naquele tempo, o domínio romano era fato consolidado, seria loucura resistir a ele. Bem antes de Plutarco houve um outro desses gregos romanizados: Políbio de Megalópolis (204-122 a.C.), historiador que abriu caminho para que outros gregos cultos fossem acolhidos no seio do patriciado romano.
Ainda que tendo sido um ativo oficial da Liga Aquéia que resistira ao invasor, desde que fora levado como refém para ser preceptor na família dos Cipiões, em Roma, Políbio não somente aderira ao inimigo como se tornara um dos mais famosos escritores oriundos da Grécia e colocados ao serviço do império.
A bem da verdade, diga-se que o estatuto dos súditos gregos frente a Roma era especial, bem diferenciado. O poeta satírico Juvenal já havia dito em certa ocasião que o rude Lácio, isto é, Roma, havia conquistado a Grécia, mas os gregos conquistaram Roma pela sua cultura (“A Grécia conquistada conquistou Roma conquistadora”).
O ambiente intelectual de Plutarco
Presume-se que o prazer inesgotável de Plutarco pelas idéias tenha sido adquirido bem cedo, quando freqüentava os simpósios intelectuais organizados pelo seu avô Lampias em Queronéia. Sessões que lembravam a realizada na casa de Céfalo com a presença de Sócrates, descrita por Platão na “Politéia”(A República, 1.2-1.5), tertúlias às quais o próprio Plutarco dedicou vários volumes (a Symposiaká, em nove livros). A isso juntou-se o fato dele ter sido criado ao pé do Monte Parnaso, morada das musas e do templo de Apolo. Elevação que era tida como o centro do mundo para os poetas (até Cervantes, séculos depois, dedicou-lhe o poema “Viaje Del Parnaso”, 1614). Logo adiante, na Fócida, ficava o oráculo de Delfos, o mais afamado do mundo grego, onde mais tarde Plutarco, já homem maduro, assumiu as funções de sacerdote pítio. Como poderia um jovem inteligente escapar de tamanho apelo cultural, se desde cedo fora envolvido por livros e por previsões? Não o fez. Tornou-se um autor prodigioso: um polímata. Praticamente ninguém daquela época escreveu tanto quanto ele, apesar dele ter dedicado tanto tempo a viagens internacionais e recepções sociais. Numa delas ganhou cidadania romana por obra do seu amigo L. Mestrio Floro.
No chamado Catálogo de Lamprias (relação de livros existentes numa biblioteca dos séculos III-IV) constava a existência de 227 títulos atribuídos a Plutarco. Tratava-se de uma verdadeira avalanche de polígrafos e monografias que os especialistas separaram em dois grandes corpos: as obras morais (Moralia) e as biografias que compõem as Vidas paralelas (Bioi Paralleloi). Desta última foram extraídas as narrativas sobre Alexandre, o grande, e Júlio César da presente edição.
Restaurando o platonismo
Antes de adentrar-se na seleção feita por Plutarco dos personagens merecedores de sua atenção, é necessário precisar a posição filosófica do autor, visto que duas correntes predominavam no universo intelectual da época: a epicurista e a estóica.
Os grandes sistemas metafísicos anteriores, identificados com o período clássico (os séculos V e IV a.C.), especialmente o platônico, estavam por assim dizer desativados na época de Plutarco (o filósofo Hegel atribuiu o declínio da influência de Platão e de Aristóteles ao fim da soberania das cidade-Estado gregas). A outrora altiva pólis encontrava-se subordinada às potências da época, caindo na órbita de forças políticas estrangeiras (o Império de Alexandre, da Macedônia, e, em seguida, o dos césares romanos). Aos gregos livres e cultos, reduzidos à apatia pela evidência da ocupação, restou abrigarem-se em escolas de pensamento que lhes servissem de refúgio. Um puro escapismo à realidade.
Ora, Platão e Aristóteles, em consonância com seus discípulos mais chegados, tinham sido os ideólogos do cidadão ativo, que fosse alguém permanentemente envolvido com os problemas da coletividade. A longa transição das cidades helênicas para as metrópoles helenísticas e depois para as megalópoles alexandrina e romana somente contribuiu para acelerar um comportamento cada vez mais arredio dos habitantes da pólis às questões de interesse público.
A posição de Plutarco, ao filiar-se à doutrina de Platão, atacando por vez o epicurismo e o estoicismo (nos ensaios “Sobre a produção da alma no Timeo” e nas “Questões Platônicas”), alinhou-o entre os restauradores. Tratava-se de voltar a épocas passadas, a quatro ou cinco séculos antes, quando a participação na coisa pública era uma obrigação e um privilégio do grego livre.
Se seus conterrâneos da Beócia, da Trácia e da Ática, uma vez dominados, não tinham mais condições de exercê-la, de exercitarem-se nas atividades de interesse geral, o mesmo não se dava com os romanos. Enérgicos na ampliação do império, estavam eternamente envolvidos nas polêmicas do Fórum e da Cúria, visto que o poder dos imperadores na época de Plutarco ainda não se consolidara o suficiente para sufocar-lhes por completo o ímpeto. Ainda que um César empunhasse o bastão do mando, a capital do antigo Lácio, transformada em metrópole universal, fervilhava em idéias e propósitos.
Forjar cidadãos através de bons exemplos, fortalecendo-lhes as convicções, sempre fora uma preocupação que os romanos herdaram de suas origens republicanas. Seguramente foi pensando neles que Plutarco – que passou largas temporadas freqüentando os círculos intelectuais em Roma – lançou-se na extensíssima tarefa de compilar os dados biográficos de antepassados ilustres de ambos os povos, gregos e romanos, visando alimentar-lhes o civismo e a correção pública. Como ele mesmo entendia, “o contato com os grandes homens do passado infunde em nossa própria natureza suas altas virtudes”.
As duplas de Plutarco
Ao contrário de Suetônio (60-120 a.C.), o ligeiro biógrafo dos césares (Vida dos Doze Césares), que pinçou atos bizarros dos imperadores, traçando caricaturas de alguns deles, Plutarco, seu contemporâneo, optou pela relevância dos seus retratados. Tinha a firme convicção didática de que a virtude era um atributo a ser imitado, seguido por qualquer pessoa de boa vontade. Acreditava, como Aristóteles e os peripatéticos, que toda a ação é resultante de uma concepção ética que a antecede. Até as coisas negativas que os grandes cometeram podem servir para nos corrigir.
As parelhas organizadas por Plutarco – que começaram a circular mais ou menos na mesma época que o Novo Testamento, os Evangelhos dos seguidores de Cristo – obedeceram a uma ordem previamente estabelecida. Os cinqüenta pares que ele combinou (dos quais somente 23 chegaram até nós), ainda que sem as consonâncias ideais, foram eleitos de acordo com a representação histórica, caráter ou alguma virtude específica (ou a falta dela) dos biografados.
Colocou Teseu (fundador da ordem política de Atenas) ao lado de Rômulo (o mitológico fundador de Roma); Sólon (o famoso legislador da constituição ateniense) com Publícola (o pai da pátria da República romana); Aristides junto a Catão, por representarem as virtudes cidadãs; Demóstenes com Cícero, por dignificarem a arte da oratória; Alcibíades e Coriolano, por terem levantado a espada contra a própria pátria. E, evidentemente, o fato de ter associado Alexandre a César deveu-se a que os dois príncipes forjaram impérios.
Longe de ser um levantamento de excentricidades e cacoetes de gente famosa, em cada um dos livros descortina-se um amplo panorama da época em que os biografados viveram. Ainda que, modesto, não ambicionasse ser um grande historiador, enfatizou no preâmbulo a Alexandre e César que escrevia sobre “vidas” e não sobre “história”. A política, os costumes e as instituições, a mentalidade, as circunstâncias em que a ação ocorre, os discursos, as arengas, as batalhas, quase tudo isso encontra-se na narrativa de Plutarco.
No final de cada livro dedicado a cada um dos pares, ele opera uma synkresis, a comparação entre os dois escolhidos. Trata-se de uma avaliação final como se as figuras em questão estivessem frente a um julgamento do tribunal da história. Até os nossos dias, Vidas paralelas continua sendo uma das melhores narrativas sobre o mundo greco-romano antigo.
A concepção histórica de Plutarco
“Não é uma maravilha que, através do tempo infinito, inclinando-se a fortuna ora para um lado ora para o outro, os acontecimentos voltem a repetir-se muitas vezes nas mesmas circunstâncias?... e se os elementos ocorridos estão limitados a certas circunstâncias, é necessário também que muitas vezes os mesmos efeitos sejam produzidos pelos mesmos meios.”
(Plutarco – Vidas ilustres – Sertório e Eumênes, cap. I)
Platão era um crente no fenômeno da mentepsicose, a doutrina do eterno retorno das almas. Aquilo que contém a vida, ao morrer, desprende-se para o céu e de lá retorna. A psiquê, purificada e esquecida de tudo, voltava à terra para vir novamente dar a vida a outro corpo, e assim sucessivamente até o final dos tempos. Todavia, estas almas que perdiam a memória quando deixavam o mundo do além, precisavam ser novamente orientadas durante a reencarnação.
Era exatamente para isso, para o proveitoso uso destas almas, dessas essências órfãs que poderiam extraviar-se sem ajuda de exemplos, que Plutarco coletou material sobre os homens ilustres. Que eles servissem, em meio à cegueira ou à escuridão geral da existência, de pontos luminosos a aclararem o caminho futuro.
Vidas paralelas lembra uma exposição de esculturas colocada num passeio público. Extensa fila de estátuas de estadistas e militares postas lado a lado para que o público, contemplando-as, lhes admirasse a perfeição, as similitudes e as divergências. Ainda que feitas de mármore, bronze ou pedra, lá estavam, à vista de todos, a virtude, a coragem, a magnanimidade, a valentia e, por que não, a covardia e a pusilanimidade.
A concepção de história dele, pois, é evidente: são seres fenomenais, os heróis, que merecem estar nos pedestais da pátria. Eles são os que produzem os acontecimentos realmente relevantes através dos tempos, são como os titãs capazes de alterar o rumo das coisas com um só gesto ou ação.
Se Platão advogou que o melhor regime político era o regido pelo filo-basileus, o rei-filósofo, que graças ao seu conhecimento e sabedoria revelava-se como o mais adequado dos governantes, não é de se estranhar que para o seu discípulo Plutarco a diligência da história fosse impulsionada pelos indivíduos excepcionais, cuja função, entre outras tantas, era a de servir como arquétipos aos demais cidadãos para que seguissem as normas da boa conduta moral.
O mestre do civismo
Se todas as coisas aconteciam em duplo, pois todo herói produzia o seu êmulo, conforme a expressa citação dele acima, nada impedia de alguém imitar o que já ocorrera no passado distante na intenção de reprisá-lo. Assim se deu com o próprio Júlio César, que se modelou em Alexandre (e Napoleão Bonaparte, leitor voraz de Plutarco, que imitou os dois). Mas a leitura de Plutarco não se reduz somente ao estímulo ao mimetismo, pois ele, como bom escritor que era, recorreu a variados recursos literários, tornando seu texto extremamente atraente.
E uma das razões do sucesso de Plutarco está no gosto pelo detalhe, na humanização dos estadistas. Lá está o príncipe Alexandre domando Bucéfalo, o seu fogoso corcel, expondo-o contra o sol, ou o jovem Júlio César, capturado pelos piratas do Egeu, impassível, redigindo textos e lendo-os em voz alta para seus captores, obrigando-os ao silêncio.
“Não é nas ações mais ruidosas que se manifesta a virtude ou o vício, senão que muitas vezes num fato qualquer do momento, uma observação espirituosa ou uma ninharia qualquer serve mais para esclarecer um caráter que em batalhas nas quais morrem milhares de homens, numerosos exércitos e cidades postas a sítio”, assegurou ele numa passagem famosa.
Rousseau, por sua vez, disse sobre ele: “Pintou os grandes homens nas pequenas coisas, um traço ligeiro... uma palavra, um sorriso, um gesto é suficiente para caracterizar o herói de Plutarco”.
Todavia, lê-lo não foi hábito recomendado pelos padres da Igreja, pois no seu extenso rol não constavam homens santos, mas heróis pagãos. Coube assim aos humanistas do Renascimento, escritores como Petrarca, Guarino, Salutati e Leonardo Bruni, retirá-lo do olvido em que se viu mergulhado na Idade Média para voltar à cabeceira dos homens de Estado e dos literatos.
Com a revitalização do individualismo e da paixão pela ação promovida pelos novos tempos, impulsionados por Colombo, por Copérnico e Galileu, versões resumidas das Vidas voltaram a circular nos meios cultos (a primeira reedição completa em grego apareceu na Itália, em 1389; em latim, em 1470).
Carlos V, imperador do mundo, foi iniciado em Plutarco ainda bem jovem; Shakespeare dele se abeberou para inúmeros dramas; Racine e Corneille, mentores da tragédia clássica francesa do século XVII, fizeram de Plutarco o Homero dos tempos modernos.
Fazendo escola
Publicam-no, como é o caso desta edição dedicada a Alexandre e a César (L&PM POCKET, 2006), quase sempre em separatas, pois a totalidade das Vidas paralelas alcança bem mais de duas mil páginas. Pode-se dizer que não houve estadista ocidental de respeito que, em algum momento, não passasse os olhos sobre um ou outro tomo de Plutarco. Além disso, por todas as partes ele fez escola. Aqui no Brasil o mais representativo foi Octávio Tarquínio de Souza, historiador com vasta obra dedicada aos “Fundadores do Império Brasileiro” (integrada por alentadas biografias de D. Pedro I, José Bonifácio etc...). Mesmo o democrata Rousseau tinha a crônica de Plutarco, esse educador de príncipes, em alta conta. Recomendou-a como obrigatória para quem ambicionasse fazer carreira pública. Mesmo o homem comum, o republicano, devia recorrer a ela, pois ainda que tratasse de príncipes, de patrícios e chefes políticos, Rousseau entendeu Plutarco como um dos maiores mestres do civismo em todos os tempos. As lições dele são universais, válidas para todos os tempos e idades, ainda que estejamos vivendo na idade das massas, sob o domínio das multidões. É um historiador (se bem que modernamente alguns lhe recusem este atributo) que até hoje mantém um público. De algum modo, independente da opinião que se possa ter da galeria dos seus personagens, sua prosa atraiu admiradores que lhe são fiéis, mesmo transcorridos dezoito séculos da sua morte. Quais e quantos outros escritores daquela época tão longínqua gozam ainda de tal estima?
Texto de Voltaire Schilling. Em Alexandre e César, L&PM POCKET, v. 474)
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Carlos Eduardo Neto / Mogi das Cruzes - SP
O livro e ótimo tenho alguns menos este, vou comprar com muito prazer a editora esta de parabéns: uma casa sem livros, é como um quarto sem janelas.
16/03/2009 08:58:37