20/08/2007
- Por Graham Greene
O verdadeiro valor dos dois cientistas para a União Soviética não estava nas informações científicas que forneceram, mas nos benefícios decorrentes da repercussão de sua captura. Logo após a prisão dos dois houve uma crise nas relações anglo-americanas. Um espião em liberdade, trabalhando sem interferências, é bem menos perigoso do que um espião capturado. Assim, estava mais certo o serviço britânico em defender Philby* do que o setor de contra-espionagem em desmascará-lo, forçando-o a se denunciar. O Ocidente sofreu mais com sua partida precipitada do que com sua espionagem.
Às vezes gosto de imaginar o que teria acontecido se Kim Philby tivesse, de fato, como muitos previam, se tornado o C, chefe do serviço secreto britânico. O tipo de informação que Philby teria a seu alcance dificilmente poderia despertar-lhe grande interesse. Ao contrário, até diminuiria sua curiosidade sobre o serviço de informações inglês. Nenhum problema maior, nenhuma deserção, apenas longas e vazias conferências de alto nível. O momento da decisão da KGB de que já era hora de avisar a contra-espionagem sobre Philby chegaria mais cedo ou mais tarde e seria seguido pela fuga bem-sucedida de C, tornando-se o serviço secreto britânico motivo de piada para o mundo.
Desde que a espionagem passou a fazer parte da guerra psicológica, entrou também para a literatura, de modo que é sempre conveniente examinar com cuidado as memórias de qualquer espião. Como seria de esperar, My Silent War não é o livro que os inimigos de Kim Philby anteciparam. Sua autobiografia é honesta, bem escrita, divertida, e a história que ele tem para contar depois da fuga de Burgess e Maclean é mais atraente e fascinante do que qualquer outra novela de espionagem que já li. Fomos avisados para esperar muita propaganda, mas o livro não contém nenhuma, a menos que uma digna declaração de suas crenças e motivos possa ser chamada de propaganda. Naturalmente, do seu ponto de vista, o fim existe para justificar os meios. Mas se formos julgar a maioria dos homens envolvidos em política por suas ações, mesmo um Disraeli ou um Wilson, veremos que eles também defendem esta posição, apenas menos abertamente. “Ele traiu seu país”... talvez. Mas quem entre nós nunca traiu alguém ou algo mais importante do que um país? No seu entender, ele estava trabalhando por uma série de coisas que iriam beneficiar seu país. De qualquer modo, julgamentos morais estão completamente fora de questão quando se trata de espionagem. “Ele mandou vários homens para a morte”... é a frase típica do estoque de argumentos contra Philby e Blake. Mas assim também procede qualquer comandante militar. Pelo menos na guerra da espionagem, os alvos dos canhões são voluntários. Ninguém pode conscientemente chorar pelo destino do incompetente espião Volkov, que estava traindo seu país por motivos provavelmente menos idealistas do que os de Philby.
Como muitos católicos ingleses, que sendo súditos de Elizabeth lutaram pela vitória da Espanha, Philby possui uma inabalável certeza na honestidade de seus julgamentos. Possui o fanatismo lógico de um homem que, tendo encontrado sua crença, não vai perdê-la por causa de injustiças ou crueldades cometidas por instrumentos humanos, tão sujeitos a erros. Quanto um católico bondoso deve ter tolerado nos longos e dolorosos dias da Inquisição com a esperança no futuro? Os enganos políticos não tiveram qualquer efeito sobre sua fé, nem as maldades praticadas por alguns de seus líderes. Se existia um Torquemada, este mesmo católico trazia em seu coração a certeza de que algum dia também haveria um João XXIII. “Não deveria ser surpreendente que nos anos 30 eu adotasse uma visão comunista, vários companheiros meus fizeram a mesma escolha. Mas muitos deles mudaram de lado quando o pior de Stálin veio à tona. Eu segui no caminho que havia escolhido.” Philby escreve e exige, com toda a razão, que se pense na alternativa possível que havia na desastrosa era de Baldwin-Chamberlain. “Eu sentia que meu caminho me levava à posição política do queixoso desterrado, do tipo Koestler-Crankshaw-Muggeridge, insultando o movimento que me havia desapontado e o Deus que me havia traído. Isto me parecia um destino terrível, por mais lucrativo que pudesse ser.”
Seu conceito sobre o serviço secreto britânico é devastadoramente verdadeiro. “A facilidade com que se entrava no serviço secreto britânico surpreendeu-me. Mais tarde soube que a única investigação feita sobre meu passado foi o rotineiro pedido de informação ao MI5, que checou meu nome em seus arquivos e respondeu com uma frase lacônica: Nada registrado contra. (Philby teve mais sorte do que eu. Meu nome constava de um registro policial, devido a uma ação de difamação, movida contra mim pela sra. Shirley Temple. O processo foi encaminhado ao diretor de execuções públicas e, por esse indício, meu nome teve de ser submetido ao C em pessoa.).
Chegou a haver um momento em que Philby se perguntou se de fato havia ingressado no serviço secreto que queria. Seus primeiros relatórios sobre o que estava acontecendo levaram seu contato soviético a acreditar que ele havia se filiado à organização errada.
Suas análises sobre as personalidades das pessoas com que convivia, apesar de impiedosas, são admiráveis. Não me venham falar de ghost writers, somente Philby pode ser o responsável por elas. Qualquer pessoa que fizesse parte da seção V concordaria com sua avaliação do chefe daquele departamento, Felix Cowgill, a quem Philby logo substituiria. “Cowgill divertia-se em seu isolamento. Era uma dessas almas puras, que rotulam todos os seus oponentes como políticos.” O subchefe do serviço secreto também poderia ser reconhecido imediatamente. “Vivian estava longe de sua melhor fase, se é que algum dia teve uma. Era uma figura frágil, cabelos cuidadosamente ondulados e olhos sempre úmidos.” Em relação ao C, brigadeiro Menzies, Philby é surpreendentemente complacente, mas apesar de alguns limitados elogios e de uns toques de condescendência ele não chega a valorizar o retrato mais do que o modelo. Philby demonstra um profundo respeito profissional por Skardon, o interrogador do serviço secreto que liquidou Fuchs.
Se o livro de Philby exigisse um subtítulo, eu sugeriria: “O espião como um profissional”. Ninguém poderia ter tido um chefe melhor do que Kim Philby, quando ele foi responsável pela seção Ibérica V. Philby trabalhava mais do que qualquer um e nunca dava a impressão de cansaço. Era sempre descontraído, calmo e admiravelmente imperturbável. Naquela época ele ainda estava no mesmo lado que seus colegas, a grande mudança deve ter ocorrido mais tarde, quando estava organizando uma nova seção para estudar a espionagem russa. Apesar de então já estar lutando uma guerra bastante diferente, ele manteve seu orgulho profissional. Estava determinado a fazer desta nova seção a mais bem organizada de todo o falido serviço secreto. “Quando o nosso volumoso relatório final estava pronto para ser apresentado ao chefe, sentíamos como se tivéssemos algo que podia ser chamado de um serviço. Apresentamos argumentos sérios e suficientes, capazes de persuadir e desafiar qualquer jovem a encarar esta profissão como uma carreira para toda a vida.”
Philby se refere ao cuidado e ao entusiasmo necessários para o recrutamento: “O importante era conquistar os melhores, enquanto ainda estavam disponíveis. As restrições econômicas dos tempos de paz já estavam à vista e seria bem mais fácil descartar agora os excedentes do que encontrar mais tarde as pessoas certas para preencher as lacunas que poderiam surgir.”
Nessa época nenhum contato soviético seria capaz de saber a que organização Philby realmente pertencia. Havia o orgulho profissional, é claro, mas algo mais também. Somente uma seção eficiente poderia testar de maneira eficaz a segurança do serviço secreto russo. E isso era para Philby uma trama fascinante, apesar de um dos lados saber que tudo não passava de uma luta simulada.
A história de como Philby eliminou Cowgill para alcançar sua posição, como ele mesmo admite, proporciona “uma leitura desagradável e amarga, exatamente como foi para escrever”. Sente-se por momentos o toque agudo do sincero coração.
Eu presenciei o começo daquele episódio. Sem dúvida preferi me demitir a aceitar a promoção, que na verdade serviria como uma peça na engrenagem de sua intriga. Na época atribuí a manobra a uma ânsia pessoal de poder, a única característica de Philby que eu considerava desagradável. Estou feliz agora de saber que estava errado. Ele servia a uma causa e não a si mesmo. Assim, recuperei minha velha simpatia por Philby. E lembro com prazer os demorados almoços no St. Alban’s quando toda a subseção despreocupava-se sob sua licença, enquanto bebíamos. Mais tarde, os encontros à noite, quando discutíamos coisas sem importância, no bar que ficava atrás da St. James. Se alguém cometia um erro de julgamento, ele era sempre o primeiro a desculpar e minimizar, sem qualquer espírito crítico, e desviava a conversa com uma observação espirituosa. Tinha todas aquelas pequenas lealdades para com seus companheiros de trabalho, mas naturalmente sua lealdade maior nos era desconhecida. Não considero esta a menos admirável das qualidades humanas de Philby. Durante todos aqueles perigosos anos, ele a utilizou com Burgess, sem deixar jamais que seus nervos, humor ou mesmo afeição o traíssem.
Anos mais tarde, depois que Philby foi desmascarado por Macmillan na Câmara dos Comuns, eu e um velho amigo de Kim estávamos em Crowborough e pensamos em visitá-lo. Não havia nenhum sinal de cuidados com o jardim, que estava coberto por mato, e ninguém respondeu a campainha quando tocamos. Olhamos pelas janelas daquela casa feia e esparramada da era eduardiana, às margens do bosque de Ashdown, o lar daquele pobre homem. A correspondência não era recolhida há um bom tempo. No chão, em frente à porta de entrada, se formava uma pilha desordenada de folhetos de propaganda. Na cozinha havia alguns litros de leite vazios e uma única xícara suja na pia. Parecia mais um acampamento cigano abandonado do que a casa de um homem com mulher e filhos. Nós não sabíamos, mas ele já havia partido para Beirute, a última etapa de sua viagem para Moscou, o lar que ele nunca havia visto. Depois de trinta anos de trabalho clandestino por uma causa secreta, certamente ele havia conquistado o direito a um descanso.
Tradução: Anna Maria Terra Magalhães
* Kim Philby (1912-1988), agente soviético que chegou dirigir uma das seções do serviço secreto britânico, foi contemporâneo de Graham Greene (1904-1991), escritor que serviu à Inteligência britânica durante a Segunda Guerra.
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