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Lembrando Bukowski

16/08/2007

- Por L&PM Editores

A juventude do artista, o momento em que se dá sua formação como escritor, o instante em que o indivíduo toma consciência do seu irreversível não-pertencimento à comunidade, as agruras e as feridas daqueles que enxergam o mundo com outros filtros que não os das pessoas comuns parecem ser temas inesgotáveis para a literatura. Basta, por exemplo, lembrarmos de obras de altíssima realização como Tonio Krüger, de Thomas Mann, Retrato de um artista quando jovem, de Joyce, e Ganhando meu pão, de Máximo Górki. Creio não ser ousadia incluir entre esses títulos emblemá­ticos Misto-quente, de Charles Bukowski.

Bukowski é, atualmente, autor bastante conhecido do público brasileiro. Pelo menos uma dezena de obras suas estão traduzidas, e boa parte dos títulos disponíveis no mercado faz parte do catálogo da Coleção L&PM Pocket. Ao mesmo tempo, porém, Bukowski ainda não conseguiu se livrar do estigma de autor de segunda linha, de segundo time, um autor cujo mérito só poderia ser encontrado por leitores desajustados, inexperientes ou por jovens que vêem na literatura do autor de A mulher mais linda da cidade, direta e sem pejos, a oportunidade de encontrar situações e descrições que, em certo aspecto, parecem mais próximas da realidade em que vivem. E assim se estabeleceu um equívoco bastante grave. Equívoco perdoado ao leitor comum, mas que muitas vezes é mantido pelos próprios críticos li­terários.

Em primeiro lugar, Charles Bukowski não é o personagem-narrador de seus textos. Seus personagens são criações literárias, invenções elaboradas e não simples colagens da vida do autor. O forte caráter autobiográfico que pode, com certeza, ser encontrado ao longo de toda obra é somente meio e nunca fim. Tanto o velho safado como Henry Chinaski, protagonista de Misto-quente, Factótum, entre outros livros, são alter egos ficcionais.

Em segundo lugar, a simplicidade aparente do texto, a narração direta dos eventos (tão cara à ficção americana) é ardilosamente arquitetada por um autor que domina perfeitamente as técnicas do fazer literário. Ou seja, toda a fluência pregada pelos personagens de escritor criados por Bukowski, ainda que espelhos dele próprio – e não há reflexo mais enganoso –, é uma construção elaborada, dissimulada pelo louvor à bebida e à escrita não-convencional. Os palavrões, a escatologia, os porres homéricos são mentiras que nos convencem da verdade, mentiras que nos fazem acreditar, mentiras que tornam nossas próprias misérias mais suportáveis, mentiras que são a base primeira da literatura, lembrando a vigorosa idéia de Vargas Llosa.

Trecho da apresentação de Pedro Gonzaga, tradutor de Misto-quente

Confira em formato PDF o conto "Na cela do inimigo público número um", extraído do livro Fabulário geral do delírio cotidiano e publicado na revista Oitenta em 1984. Leia também a biografia do autor aqui.